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A potência dos zines

O zine e/ou o folheto são suportes, atualmente, para a divulgação de uma literatura periférica ao círculo de editoras consagradas. Muito simples de ser confeccionado, o zine atrai escritores dos mais variados “estilos” de escrita. Nessa matéria não quero discutir a diferença entre folheto e zine, pois, isso pode variar de região, de país, de épocas e momentos.

Mas não só de escrita vive o zine, há muitos que contém imagens recortadas de revistas, jornais, propagandas, tudo isso para compor o texto poético. Pode-se dizer que o zine tem uma personalidade bastante anárquica, pois circula a preços extremamente baixos, é feito quase que sempre artesanalmente e, geralmente, o grande foco é espalhar poesia. É importante ressaltar que para fazer um zine não é preciso buscar um padrão — até porque não existe isso. Eles são internacionais. Há zines em vários países.






A produção de literatura nos zine é total e puramente independente. Talvez a literatura “mais underground” hoje esteja nos zines ou nos folhetos. Por mais que o movimento crescente de editoras independentes esteja em voga, elas (óbvio que há exceções) ainda se mantem dentro do circulo comercial, capitalista. E ser comercial não combina com os zines, pois, a intenção principal não é lucrar, apenas divulgar literatura. Além disso, geralmente, são os próprios poetas que confeccionam seus zines, se diferenciando das editoras independentes e das “grandes editoras”, que precisam de outras pessoas para produzir os livros. Anárquico da primeira à ultima página.

Por outro lado, na prática, geralmente, nem sempre os autores ficam restritos aos zines, porque muitos também publicaram ou publicam livros de poemas e/ou prosa — e nem sempre por editoras grandes, às vezes por independentes, como as cartoneiras.

Longe de querer escrever um textão sobre a história dos zines, esse breve passeio teve como objetivo apenas contextualizar o leitor para o que virá a seguir. Na internet, tem muitos sites que explicam profundamente sobre a história dos zines. No final da matéria, deixarei links para quem quiser complementar a leitura. Esse texto conterá cinco entrevistas com poetas do Recife que já publicaram ou publicam em zines. Serão duas entrevistas por mês, durante dois meses. A última entrevista, no terceiro mês, será com uma pessoa que é referencia há anos quando se fala em literatura marginal e produção de zines.



As duas primeiras entrevistas serão com Patrícia Naia, autora do recente zine Poemagens. E Ítalo Dantas, autor do recente folheto Corrente de Bike no Pescoço.

Patrícia Naia, além de poeta, também é uma das criadoras do coletivo Controverso Urbano, que promove atividades artísticas na cidade do Recife, como saraus e exposições, dando voz a escritores e artistas fora do cânone.

Ítalo Dantas, além de poeta, é idealizador da La Bodeguita, revista recém-lançada que edita poetas (regionais, nacionais e sul-americanos) em formato de folheto e vende a preços baixíssimos, também dando oportunidade há gente nunca antes publicada.

As respostas dos entrevistados foram publicadas inteiramente como foram respondidas, sem nenhuma alteração no conteúdo.



L.F.A -O que seria o zine, atualmente? Há diferença entre o folheto?


Í.D. - O zine pode ser visto como uma publicação independente, que usa de várias linguagens para compor o seu texto. Fundamentalmente ele tem um caráter meio anárquico, no sentido de solidariedade e cooperação, de dar voz a outros artistas independentes e circular a preços baixíssimos. Eu acredito que a diferença para o folheto seja mais uma questão de construção, mas a proposta é basicamente a mesma. Os folhetos são uma forma rápida de espalhar literatura, mas o formato é focado em um único autor e é construído como um pequeno livro, ou seja, o texto é digitado, formatado etc. Pela minha curta experiência eu vejo que o zine tem um lance de reunir vários autores (na maioria dos casos) e apelar para um visual menos polido, com ilustrações e recortes. Mas no fim termina descambando para a questão da nomenclatura. Por exemplo, a Bodeguita trabalha com folhetos - em sua própria concepção do que é "folheto", mas há quem chame de zine. Nessas horas, o nome pouco importa.


P.N - Na minha opinião, os dois se confundem e dialogam simultaneamente. Mas gosto de pensar que o zine tem suas peculiaridades por ser um objeto mais simbólico, por carregar uma estética diferente e ter a forte presença de imagens, desenhos ou colagens entre as poesias, na maioria das vezes. E por também carregar uma proposta de criar reflexões sociais através de um conflito artístico.



L.F.A - Como você enxerga o potencial literário do folheto e/ou do zine?


P.N - Extremamente amplo. O zine é um material muito, muito acessível. Ele é de fácil troca, de fácil compartilhamento, e se for o caso, de fácil comercialização também. Gosto de pensar que os zines/folhetos são um vento forte soprando numa poesia que estava ali quieta levando-a para outros cantos. Percebo que existe uma curiosidade, um prazer maior em ler algo produzido pelo próprio poeta, pois como acontece na maioria dos casos, muitos zines são apenas as cópias de versos escritos à mão e imagens que brincam com esses versos, isso quebra as distâncias com qualquer pessoa que vai ter contato com esse material, isso aproxima o leitor do poema, cria elos com o autor, é uma relação íntima de abertura entre o sentimento do poeta, e o sentimento da pessoa que abre o zine e dá de cara com esse universo.


Í.D - Depende muito de quem se propõe a fazer essas publicações. No caso de Zizo, por exemplo, que é para nós uma referência em produção independente, há uma preocupação maior em construir narrativas visuais, como a SUE, sua série mais recente. E no meio dessas narrativas vão se emaranhando poemas e textos diversos, que vão desde um haicai de Xico Sá até um texto sobre a vida sexual de Honoré de Balzac. No caso da Bodeguita, a produção de folhetos tem incentivado a produção de alguns autores a níveis quase absurdos. A ideia é manter pequenos volumes que vão sendo lançados quase que quinzenalmente. Em um mês de existência a Bodeguita já conta com mais de dez títulos. Procuramos também sair do eixo do nosso próprio estado. Nesse tempo pulicamos Guilherme Conde, do Espírito Santo (mas que mora no RJ) e estamos preparando uma publicação com um poeta e ilustrador de Natal (RN) chamado Victor Azevedo. Também temos planos para publicar dois poetas de fora do país: Francisco Ide Wolleter (Chile) e Martín Rangel (México). Creio que esse seja o maior potencial - e ironicamente o que mais se perde - da publicação independente. Temos uma gama infinda de autores absurdamente relevantes pra nossa poesia de fato contemporânea e não nos damos conta. Nem é preciso falar das opções que as redes sociais nos dão nesse sentido. Precisamos parar de mastigar os nossos defuntos e olhar ao nosso redor.


L.F.A- É possível construir uma estética poética que habita exclusivamente os zines e/ou folhetos?


Í.D - É uma pergunta complicada, porque o folheto (ou zine) se refere apenas ao suporte em que os textos circulam. Mas é cabível pensar que de fato isso possa influenciar numa mudança de direção em relação à estética do próprio texto porque há toda uma ideologia por trás da publicação independente. Talvez isso surja como um levante quase que anticabralino, porque terminamos deixando de lado a palavra mais dura e ressequida em prol de um texto mais sarcástico e provocador. Não dá pra dizer que o cara que escreveu dois livros em um mês seja um cabralino, e não tem nenhum bicho feio nisso. Claro que isso não nos impede nenhuma engenharia de verso, apenas creio que o movimento de uma poética cabralina como é cultivada pela Academia tenha se esgotado. E essa linguagem mais ácida está deixando de ser exclusividade dos zines. É, Cabral times are over.


P.N - Sim. É possível. Particularmente, penso que a leitura para o zine não pode ser extensa, precisa ser acompanhada de imagens, e essencialmente precisa ser uma leitura objetiva, e que tenha o “foco” de ser mais acessível possível.


L.F.A - Você concorda com a ideia de que a academia (lê-se os cursos de graduação em Letras) toma distancia proposital dos autores e o do “movimento” literário dos zines e/ou folhetos?


P.N - Concordo que a academia procura distâncias propositais de tudo aquilo que não “lhe serve” ou de tudo aquilo que é diferente do conservadorismo barato que, infelizmente, ela ainda insiste em impor. Talvez essa seja a maior magia dos zines, que juntamente com a poesia e outras artes marginalizadas se tornaram um suporte de arte subversivo, independente, carregado de significados, e é por isso que conquista essa proximidade com o leitor já dita antes. Há ainda, lamentavelmente, uma necessidade magistrada de manter as “artes” em determinadas formas e padrões, e engessar o sentimento, a abstração e a subjetividade artística desprezando tudo aquilo que foge disso. Por isso, a grande importância dos zines. É fundamental que essa literatura independente se mantenha producente, transgressora, criadora e resistente.


Í.D - A Academia é engraçada, não sei se fede ou cheira. O que ocorre é o seguinte: há uma deficiência gritante em nossa crítica que deveria ser suprida pela Academia. Parece até que alguns professores e acadêmicos têm convênio com o Estado e só consideram obras que estiverem institucionalizadas, e às vezes nem isso, como no caso nem tão recente da ABL, que não reconheceu digno de prêmio nenhum livro de poesia submetido a seus julgamentos. Ora, a nível nacional isso é realmente absurdo. O que eles não veem é que a publicação independente tem dado frutos importantíssimos tanto no Brasil quando em outros países (principalmente da América Latina). Se eles tomam essa distância propositalmente eu não sei, sei apenas que falta Crítica com "c" maiúsculo (e honestidade) para reconhecer as boas e as más produções, como sempre foi.



Zine de Patrícia Naia




L.F.A - É possível afirmar que os folhetos e os zines são portas democráticas e acessíveis para escritores ou artistas que não fazem parte das “grandes editoras”. Quais as causas e consequências disso?


Í.D - Muitas vezes o autor passa de popstar apenas porque tem ISBN. Tudo isso são formalidades, qualquer banalidade pode ter registro de uma insituição. Do outro lado, muita gente constrói uma voz sincera e contundente na arte sem precisar de tais legitimações. Quando manifestações artísticas precisam de um aval burocrático, seja por meio de editais ou editoras grandes, aí sim é quando temos problemas.


P.N - É totalmente! Democratização artística, reconhecimento da diversidade na estética poética, fomentação da verdadeira pluralidade literária, multifaces poética que consegue unir versos e imagens dialogando da maneira mais subjetiva possível, deixando caminhos para o leitor, abrindo mais canais inspiradores para o poeta. Uma das mais importantes consequências disso é uma arte acessível. Uma literatura que não se isola para determinados grupos, e que quebra a elitização da poesia, que cospe na face da leitura burguesa, que não se alimenta das exaltações aos cânones, sendo assim, uma arte que não cria barreiras, mas sim que derruba todas elas.



Acervo de lançamentos da La Bodeguita, editada por Ítalo Dantas





L.F.A - O zine e/ou folheto, pode(m) ser considerado(s) marginal? O que seria “ser marginal” na arte, atualmente, para você?


P.N - O zine é um suporte artístico extremamente marginal, porque é independente, porque é subversivo, e porque vai onde o leitor está. Primeiro, gosto de dizer que, a marginalidade está na alma de quem escreve, um artista não é marginal porque diz que é, a rebeldia necessária para entender o sentimento de estar “à margem” está no peso de suas ideologias, no seu pensamento crítico diante da sociedade, das pessoas e de tudo que está ao redor. A literatura marginal não se conforma com o que está posto, despreza as métricas, as rimas, e as formas engessadas de expressar os sentimentos sobre as coisas. A arte marginal é a transgressão, é um sentimento vivo ridicularizando esse modelo pronto e falido de fazer arte.


Í.D - Eu diria que são meios alternativos e independentes. Poesia "marginal" pra mim é aquela estética própria de 70, de gente como Torquato, Ana C. e afins, que depois foi recriada de forma peculiar por Miró (com um tanto de lirismo drummondiano), aqui no Recife. Mas hoje em dia o termo "marginal" vem usado pra denominar um tanto de muito que termina sendo um grande vazio. Independente, alternativo e marginal são três coisas diferentes e que eu não me atrevo a classificar. Eu acredito que Miró, lá pelos idos de 80, tenha fechado com o ciclo do que chamam de poesia marginal. Em termos de poesia - não vou entrar em méritos de performance e relações com o corpo - ele recriou a estética do poema-piada, trabalhou a poética urbana "bruta", o verso direto, o lirismo, e o mais notável: deu voz a um setor desprivilegiado da sociedade. Hoje em dia há uma confusão entre marginal, independente, engajado e por aí vai. Antes de colocar rótulos nós devemos procurar qualidade estética, que é, afinal, o que legitima a arte - e o que muito falta. Deixo aqui, para custo de reflexão, um verso de Joaquim Moura Costa, heterônimo pouco conhecido de Pessoa.

Vejo que rimas sem custo E que o verso que te sai justo Sem confusão se interpreta. P’ra seres poeta, Augusto, Só te falta ser poeta.

Gratidão aos dois poetas por reservar um tempinho para contribuir com essa matéria.

Beijo&abraço.

 

Alguns links para entender um pouco mais sobre a história dos zines :

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