Uma conversa com Fred Caju
Fred Caju é um poeta recifense , editor da Castanha Mecânica, artesão do livro e fundador do blog Cronisias. Já publicou: Arremessos de um dado viciado, Intervalo aberto, Paisagens Sépias, As tripas de Francis Conceição por ela mesma e Estilhaços, além de outras peças gráficas e zines.
A poesia contemporânea que voa pelo nordeste também pousa nos versos abissais de Fred Caju
Essa pergunta é clichê, mas responde muitas coisas, e é a porta de entrada sempre para um diálogo sobre poesia e literatura com qualquer pessoa. Como, onde, e em que circunstâncias aconteceram teu primeiro contato com a poesia?
Eu sempre acho difícil responder isso porque a toda hora tento colocar esse lance de poesia o mais perto do chão possível. Então acho que deve ter sido em algum desvio, não sei. Com certeza plena não foi com os livros. Até porque em casa ninguém tinha um hábito da assiduidade com leituras. Livro só entrava se fosse didático e paradidático. Então não dá pra dizer que minha gênesis com a poesia foi por essa via literária. Até porque hoje estou convencido que poesia tá muito mais em como você escuta, como você vê o mundo; raríssimas vezes em como você fala. E esse modo de sentir o mundo nem sempre precisa ser escoado ou resultar em algum poema, fotografia, canção. Acho que em algum momento eu devo ter recusado participar de alguma pelada e ao invés de jogar bola fiquei sem fazer nada e foi bom. Pode ter sido esse meu primeiro contato com a poesia.
Hoje, o que a poesia representa na tua vida?
Entranhou tudo já. Não é algo mais externo e por isso é algo que protejo com violência. Estou respondendo isso em uma manhã de carnaval com Olinda e Recife aqui ao lado, para dar um exemplo prático e imediato. Pela manhã sinto mais clareza em movimentar as teclas e a caneta, não vai ser o carnaval que vai levar isso de mim, não importa quantas possibilidades ele queira me trazer. Atualmente muito dos meus movimentos estão relacionados ao livro. Além de escrever, sou editor, artesão de livro e, ao meu modo tímido e a contrapelo, produtor. Todas essas atividades complementares eu aprendi para maior projetar os poemas, também me aventurei na área de designer e na exploração de hipertextos e audiovisual também para dar expansão ao que escrevo, que é a forma que sei estar no mundo. Essa proteção violenta que faço à poesia, à literatura, às vezes me coloca como uma figura difícil de se lidar. Mas, porra, vem malando do nada me pedir pra recitar poema e acha que eu tenho que abrir mão da remuneração do meu trabalho? Não aceito isso. Como disse, cada passo que tomo é em função da literatura e isso fez com que eu acabasse transformando o estudante de boletim gordo de notas azuis em um homem que caminha na neblina. Já enfrento riscos demais para sair de bolso vazio.
Quais são os nomes da literatura que te inspiram, te dão instiga, lombra, prazer?
Eu sempre vou ter que responder que o primeiro é Cabral, mesmo que eu esteja distante dele. Foi muito importante ler “A educação pela pedra” para mim. Hoje luto para descabralizar o meu punho. Não sei se consigo, até porque outro nome que acho foda é o Alberto da Cunha Melo. Gosto muito da “Lavoura arcaica” do Raduan Nassar, foi um espanto necessário para mim. E sou apaixonado confesso pelo Miró. Atualmente procuro pescar mais da literatura contemporânea. Tem muita gente que admiro muito, mas vou falar apenas dos éditos em livros. Acho o Philippe Wollney um poeta interessantíssimo, pelo texto e por toda a sua bagagem. E é bem massa saber que as mulheres estão ocupando esse rol de literatura contemporânea com muita força. Recentemente fui fazer umas comprinhas na internet na falecida Cosac-Naify e só quando os livros chegaram me dei conta que só tinha a mulherada presente. E esse avanço não é só nas editoras tradicionais; a editora Patuá, que tem o grosso da produção em poemários e de autores estreantes, tem um acervo bem equilibrado entre autoras e autores. A Cartonera do Mar é uma editora artesanal só de mulheres que admiro muito. E tem a Mariana de Matos que também faz um trampo muito além do livro, de poesia mesmo, de ocupação de todos os espaços. A Mel Duarte de São Paulo que é uma figura que está trazendo o holofotes pra questões de gênero e negritude de uma forma muito foda.
Fala um pouco sobre a Castanha Mecânica, e de como surgiu a ideia de produzir os próprios livros.
A Castanha Mecânica surgiu de uma necessidade orgânica de escoar o que produzo. Nunca fui de escrever poema solto. Talvez por ser inseguro, preferia pensar no poema seriado, em conjunto, que algum bom poema salvasse um nem tanto. Ou seja, eu estava já a um passo de pensar no livro sem saber que estava pensando nele. E tem a timidez que fode quase tudo na minha vida. Aí eu ficava com vergonha de incomodar as pessoas mostrando poema avulso o tempo inteiro. Escrevia tudo caladinho e quando chegava a um conjunto, fechava num pdf e mandava pra uma listinha de e-mail. Acho que ninguém lia até o final, mas a recepção acabava não sendo o motor pra produzir mais. Era algo que eu tinha que fazer. Com o tempo e a curiosidade comecei a me apropriar das ferramentas de edição de texto e de html. Aí fiz a Castanha Mecânica aparecer numa plataforma livre com meus livros e de pessoas próximas que escreviam em formato de ebook livre; eu acabava sugerindo alguns caminhos ou até fazendo uma linha narrativa do zero dentro do livro. Aí quando vi já tinha virado editor. Com um certo crescimento da visibilidade e passei a monetarizar a Castanha Mecânica e vender pela Amazon. Só que acabei fazendo a editora hibernar devido a dificuldades financeiras com ela. Sempre brinco que quem trabalha com livro e nunca amargou um prejuízo pesado, provavelmente está com alguma picaretagem. Tive uma obra editada fora da Castanha, o livro “Paisagens sépias”, que saiu pela Lara Cartonera de Belo Jardim/PE. Essa minha estreia no analógico foi importante para perceber que havia uma certa espera por ela. O livro ficou mais em Belo Jardim e sempre tinha gente da RMR perguntando por ele. Aí veio o Carlos Nascimento e disse que queria editar um livro meu. Eu tinha acabado de terminar um novo rascunho de “As tripas de Francis Conceição por ela mesma”, e achei que editar com Carlos fazia mais sentido do que colocar a obra pela Amazon, já que era um livro que os poemas são de enfrentamento ao status quo. Só que demorei muito pra chegar numa versão final do livro e Carlos tinha conseguido uma bolsa de estudos na Itália. E acabou que o único dia que tínhamos para cuidar do livro era o último dia dele no Brasil. Claro que não deu certo. Acabei tendo que tomar as rédeas do processo e me apoderar das ferramentas e técnicas do livro analógico. Era mais uma tomada de assalto que eu tinha que fazer. E fiz e estou fazendo.
Quantos livros tu já escreveu e produziu?
Perdi as contas. É sério. Porque nem todo livro meu preciso publicar; alguns só eu tenho, outros mostro apenas a amigos próximos; outros tiro de circulação. Minha vaidade não se alimenta muito desses números. Atualmente no mercado estão: “Sumo de ranço”; “Arremessos de um dado viciado”; “Intervalo aberto”, “Paisagens sépias”; “Amplitude compacta” e “Estilhaços”. “As tripas de Francis Conceição por ela mesma” esgotou já há um tempo e ainda não decidi se haverá uma nova edição, me comprometi a escutar as leitoras em rodas de sabatina do livro e só vou dar esse passo após essa escuta. Os livros que produzi pela Castanha vou deixar o link maroto: http://migre.me/w8sy0
Como tu enxerga a potencialidade literária do zine?
Acho um dos cavalos mais ágeis e mais movido pelo coração para transportar a literatura. Posso reunir minha obra completa numa puta brochura com capa dura e glamour, que não abro mão do zine. Nas minhas experiências em feiras literárias, cada vez mais aumento a convicção que o zine pode salvar a lavoura. É uma publicação geralmente acessível, sensível e charmosa. Nem sempre o pessoal tá com grana para levar o livro, mas acaba levando o zine. É gostoso de fazer e é fácil de ser transportado; vira objeto de estante, mesa e viagem. E o zine, principalmente, tem uma potencialidade política preciosa para literatura, tem um ir na contracorrente intrínseco. Elimina muito mais atravessadores e coloca autor e leitor muito mais cúmplices da obra. Eu já tive um zine entre 2009 e 2010 que fiz circular entre as bibliotecas setoriais da UFPE. Logo no segundo número, recebi ajuda na montagem e no custeio, sem nem ter pedido. Acabei reunindo eles num livro homônimo “Amplitude compacta”, mas não acho necessariamente que o zine seja trampolim para livro. Ele se basta e se realiza nele mesmo. É outra linguagem.
Qual a importância de saraus na tua perspectiva?
Sempre gostei da essência do que é um sarau. No entanto, vi poucos funcionarem, na prática, de uma forma que me agrade. Não sou parâmetro, sou chato. Acho que é um espaço que deve ser fértil para a poesia. Não para poetas. Odeio quem faz roteiro para um sarau. Tem que ser orgânico. Se não tem poema para dizer, deixa que o silêncio seja parte disso. Uma vez participei de um sarau num hospital. E um poeta tava tão na instiga de mostrar seu poema novo que foi completamente insensível ao ambiente, era um poema sobre suicídio. Cada um fala do que quiser, mas deve ter responsabilidade sobre o que é dito. Também acho que é um espaço de aproximação que prezo muito. Um bom sarau acho que vai além de uma roda de poesia, até porque a poesia para alguém pode ter carnadura na dança, cortando o cabelo de alguém, fazendo um docinho. Como é um espaço de interação, acho fundamental que também questões coletivas sejam pensadas e problematizadas, que a poesia vai acontecer sem que seja necessariamente numa performance ou leitura. E tem algo também sobre sarau que é preciso ter em mente: não precisa haver poetas presentes, mas se quem organiza acha importante que eles estejam lá, que se garanta o cachê, a segurança e a permanência deles no espaço.
Ah, fala um pouco sobre Estilhaços, o último livro, e as próximas novidades.
O “Estilhaços” é um livro que possui uma característica única na minha produção: foi o primeiro que lancei ainda contaminado pela sua atmosfera. Porque sempre tem um tempo do fechamento do conteúdo até toda confecção do livro enquanto objeto. Mas tudo nele acabou de forma muito próxima, os poemas e o projeto gráfico caminharam lado a lado e a minha captura das ferramentas e minha experiência na artesania deu agilidade à montagem dos exemplares. Foi um livro que levei para rua assim que estava pronto. E, literalmente, o fiz para estar na rua. Utilizei cascas de ovos na capa para que o leitor tivesse que manter o livro em movimentação, fora das estantes. Afinal é um fator orgânico potencialmente perigoso para a conservação. Repensar e reinventar o lugar do livro é uma obsessão minha. Quem compra o livro leva um pouco dessa obsessão e acaba tendo que se virar. É um livro que eliminei a pontuação e a verticalidade dos poemas buscando justamente esse pacto horizontal com o leitor. São poemas pesados dentro de um cenário pós-catástrofe irreparável, que expõe a fragilidade da vida. Já estou preparando o poemário de desintoxicação do “Estilhaços” e já tem nome “Transpassar: poemas de atravessamento”, sai ainda este semestre. Mas a novidade mais fresquinha vai ser o anúncio da seleção da Castanha Mecânica para recebimento de originais. Fiz uma seleção e fiquei bastante feliz com as obras que chegaram. O resultado saiu na quarta feira de cinzas, último dia de fevereiro, o livro que será publicado pela casa é da autora pernambucana Patricia Naia, “O punho fechado no fio da navalha". Além disso, vale destacar menções honrosas para alguns participantes: Alberto Ferrera (PB), “O surto dos soltos”Cássio Loko (PE), “A quarta ponta do triângulo”E. Mattüs (AL), “A febre do infinito”Eliano Juvêncio (RN), “Quase não me recupero do golpe que seus olhos me deram”.