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A potência do Zine - em continuidade

Continuando a matéria sobre os zines e/ou folhetos, iniciada mês passado, com Patrícia Naia e Ítalo Dantas, este mês foi convidado os poetas Camillo José, autor do zine do coletivo lambadaria e dos folhetos “nara” e “os próximos 30min não tem propaganda graças ao seguinte patrocinador” (selo la bodeguita), também produziu o álbum diástole, pela banda Namöa; e Cecília Villanova, autora do recente folheto “Versudiversus”. Ambos já publicaram ou publicam zines. As perguntas foram as mesmas para todos os entrevistados, para ler a matéria do mês passado, basta da uma clicada básica aqui.

L.F.A- O que seria o zine, atualmente? Há diferença entre o folheto?

C.J- Creio que essa questão de nomenclaturas é mais relativa ao hábito de quem confecciona/adquire de nomear da forma que lhe soa mais estimável. Há quem veja como a mesma coisa, há quem ache que o folheto tem um trabalho mais apurado, que o zine é um lance mais lo-fi, mas são casos e casos, sabe? Eu por exemplo não gosto de chamar folhetos de “folheto”ou “plaquete”, pra mim é livro mesmo, se você teve a intenção de escrever um livro naquela proporção (digo, se teu livro tinha uma quantidade menor de poemas por uma questão estética tua) então é um livro, oras, que se foda a ABNT.

Mas independente de categorizações ou batismos tácitos, o zine representa -- mais até do que a resistência -- a resiliência, a capacidade que o que está à margem tem de se recompor, de se reconfigurar a partir do caos, de usar o abismo a seu favor. Mais do que resistir, o zine tem a natureza do insistir, do agora ou agora, da urgência de fazer barulho, é basicamente o barulho por ele mesmo.

C.V- O fanzine se trata de uma publicação mais coletiva, em que você pode inserir vários autores de vários seguimentos: como poetas, contistas, romancistas... Nele cabe a poesia, o conto, a novela, o romance, a pintura, o desenho, a entrevista.

Já o folheto se trata de uma publicação não periódica, que da capa à contra capa sua estrutura são folhas. Normalmente habita um ou mais autor.

É comum algumas pessoas confundirem o folheto de poesia de cordel com folheto independente/marginal. Quando estou a vender os meus, me perguntam se é cordel. Daí tenho que explicar que ambos são folhetos, mas a literatura é o grande diferencial. O folheto de cordel, tendo sua origem em Portugal, veio para cá e por aqui ficou. Sua literatura tem grande ritmo, sonoridade e rima. Já o folheto independente/marginal, não tem por obrigação ter um conteúdo atrelado à métrica. Normalmente tem-se uma poesia com versos livres.

L.F.A- Como você enxerga o potencial literário do folheto e/ou do zine?

C.V- Ambos tem amplo alcance porque se tratam de publicações populares, que estão mais próximas do povo. Portanto, estão circulando de uma forma mais facilitada pelas ruas. Isso é fundamental para colocar a população em contato com a leitura; sobretudo a literatura.

C.J- Toda essa coisa de publicar suas coisas de forma independente parece ter um efeito meramente simbólico, mas a verdade é que há sim uma força imensurável a propulsionar tudo isso, uma motivação ideológica simultaneamente primitiva e sofisticada. Você pode enxergar essas publicações como uma arma de longo alcance, tendo em vista a falta de controle (positiva) que se tem diante da circulação mão-a-mão dos materiais, alcançando uma gama de leitores incalculável (o que não se configura como uma constante, já que nesse telefone-sem-fio o zine pode desembocar em alguém que o trate como um panfleto qualquer, não é todo mundo que gosta de literatura, paciência); mas gosto mais de ter a ingenuidade de pensá-lo como um bumerangue, que aquilo vai voltar pra mim de alguma forma, seja por um comentário ou alguém sendo motivado a publicar suas próprias coisas por si mesmo; o melhor é uma coisa não anula a outra, então (se usado com audácia) o folheto/zine tem uma potência absurda, mas é algo simbiótico, precisa haver ação e reação de ambos lados, não há personagem secundário, é sempre uma questão de.

L.F.A- É possível construir uma estética poética que habita exclusivamente os zines e/ou folhetos?

C.J- Mais que possível, é necessário. Não faz muito sentido remar contra a maré usando o mesmo remo dos que fazem o caminho usual, se você quer chegar a um lugar diferente, tem que explorar estéticas que apontem pra algo além do horizonte de expectativas do leitor habituado a formatos tradicionais. Aqui não se deve pensar o exclusivo como algo pejorativo, mas uma tentativa de dar um timbre particular àquilo que surge dessa necessidade de independência.

Nos zines da lambadaria geralmente usamos imagens que não seguem uma linearidade em relação aos poemas publicados, gostamos dessa proporção nonsense que as coisas podem tomar, uma forma de revidar o racionalismo exacerbado e estratégico da lógica editorial mercadológica, na bodeguita fazemos isso com mais sutileza, em detalhes que às vezes podem passar despercebidos; não existe uma cartilha de como um zine/folheto precisa ser feito pra soar como um zine/folheto – e a graça da coisa é justamente essa, a heterogeneidade de formatos e propostas, (quase) todas movidas pelo mesmo espírito de ruptura, pela necessidade de gritar alguma coisa, pela mesma vontade desenfreada de entrar na roda punk.

C.V- Sou a favor do desconstruir para construir. (risos). Acredito que não. A estética tende a dominar, prender e gerar tendência. Contudo, vejo que os folhetos e zines tenham uma característica própria: a de expandir a linguagem em forma de sons, imagens...

L.F.A- Você concorda com a ideia de que a academia (lê-se os cursos de graduação em Letras) toma distancia proposital dos autores e o do “movimento” literário dos zines e/ou folhetos?

C.V- Não vejo como algo proposital, mas chamaria de vício. A academia está atrelada à gramática. Tende a estudar apenas os consagrados.

Não é o caso de todos os acadêmicos; existem algumas excessões, citando a professora e poeta da UFPE Lucila Nogueira, que já convidou alguns poetas da geração mimeógrafo, em que foram convidados para se apresentarem quanto escritores e consequentemente seus trabalhos para o universo acadêmico.

C.J- Não sei se há essas marcações de intencionalidade por trás do distanciamento acadêmico ante o que soa marginal, me parece algo semi-automático, sem maiores reflexões acerca de tais movimentos, então vejo mais como um sinal de indiferença, um desleixo cultural que permeia os estudos culturais de modo geral.

Infelizmente em grande parte do seu tempo a academia acaba servindo como uma oficina de manutenção do cânone (até mesmo acadêmicos mais voltados para a contemporaneidade tendem a explorar o termo com seletividade), o que resulta na criação de uma zona de conforto habitada por atributos (na maioria das vezes) cronológicos que determinam o que pode ou não ser lido/estudado. É certo que estamos em tempos massivos e é praticamente impossível acompanhar toda a produção, principalmente a independente, que cresce exponencialmente e diariamente, se tornando um desafio até para os interessados; não é tão simples desconstruir essas dicotomias, mas uma das premissas da graduação deveria ser justamente a de viabilizar o trânsito entre essas ilhas, visto que tal tratamento (ou falta de) com o contemporâneo influencia diretamente na recepção dos próprios graduandos ao que é congruente ao seu tempo/espaço, vide a falta de interesse do corpo discente em se debruçar analiticamente sobre a literatura não-clássica, ou pior: a ausência de professores dispostos a orientar graduandos por essas veredas ainda estrangeiras.

L.F.A- É possível afirmar que os folhetos e os zines são portas democráticas e acessíveis para escritores ou artistas que não fazem parte das “grandes editoras”. Quais as causas e consequências disso?

C.J- Depende bastante do que o autor almeja com a coisa toda. Não podemos ser ingênuos e achar que todo mundo que decide publicar um zine e/ou folheto está fazendo isso por “motivações legítimas”, aquilo que chamamos de hype está em todos os lugares e não é diferente com a literatura. Aqui não pretendo ser polêmico e problematizar o que é ou não vaidade; mas esclarecer que quando falamos em democracia em relação a essas publicações, falamos mais da acessibilidade de publicação que da circulação e recepção desses materiais. Vou explicar.

Seguindo a lógica do fenômeno da hype, a superficialidade com que se trata aquilo que é hypado reflete tanto os meios de alcance quanto a pessoa que consome o produto final, logo se você estiver inserido nessa cadeia reprodutiva as coisas vão funcionar conforme as coordenadas; mas como nem todos miram nesse horizonte específico de expectativas, a confecção de materiais mais experimentais acaba por se tornar uma odisséia tão tortuosa quanto a do autor que tenta a sorte no mercado editorial em grande escala.

Quando começamos as coisas com a bodeguita, por exemplo, a única coisa que nos esperava atrás da porta de boas-vindas era um generoso balde de água fria. Arriscamos publicar uma literatura mais dissonante, algo que soa mal/estranho, mas que busca uma experimentação abissal, um diálogo mais íntimo com as vísceras do contemporâneo – a consequência disso é alcançar poucos leitores, se tornar marginal dentro da própria margem, ganhar o posto de outsider, gastar mais que lucrar.

Falando assim parece síndrome de underground, mas a verdade é que hoje não há algo mais mainstream que se auto-intitular marginal, é quase um ritual de iniciação nos meios artísticos, chega a dar calafrios. Mas de novo, vai da pessoa, do que ela quer com aquilo tudo, o problema é quando isso se transforma num tabuleiro de batalha naval. É preciso que haja respeito tanto para aquele que prefira uma literatura mais soft quanto para o que optar por estéticas menos usuais.

C.V- Sem dúvida. É um grande meio de publicação e autopublicação que foge das editoras. Vemos aí dois lados da moeda: pelas grandes editoras, um alto custo para se publicar; o que é uma lástima e que restringe e marginaliza autores. Por outro lado, através do zine e folheto você poderá se tornar mais lido e conhecido. Eu que vendo meus folhetos de poesia pelas ruas do Recife desde 1998 (faz 18 anos) e em outras cidades desse país por onde andei, conheço bem esse termômetro.

L.F.A- O zine e/ou folheto, pode(m) ser considerado(s) marginal? O que seria “ser marginal” na arte, atualmente, para você?

C.V- Sim. São estruturas marginais porque estão a margem das grandes publicações/editorações.São marginais e independentes; nadam contra a corrente. Bandido no melhor sentido da palavra: aquele que rouba alguns minutos do leitor, por uma boa causa. Ser marginal na arte é ser herói, ser livre. Aquele que batalha arte pela arte e em troca consegue sobreviver.

Portanto, eu que digo:

A luta pelo poema

É a luta pelo dia.

Com toda sua extensão,

Faço dele poesia.

C.J- Se você estiver analisando de forma panorâmica, a produção de zines e folhetos seria uma reação ao automatismo da lógica editorial corporativa, o efeito da marginalidade seria resultado da opressão causada pelo contraste de tais estratos; mas tendo em vista o advento de tais mobilizações, não acho saudável o uso do termo marginal como algo ainda obscuro; temos cada vez mais iniciativas independentes que tornam possível a experiência da exposição e comercialização dos zines, folhetos e afins e a tendência é que isso continue se expandindo e gerando novas perspectivas.

Se olharmos de dentro para fora, veremos o marginal como uma faca de dois gumes: de um lado a substância orgânica oriunda da margem, do outro uma série de manobras mercadológicas que visam a apropriação ideológica desta para uso meramente ilustrativo. Não vão faltar iniciativas fazendo uso da “estética marginal” para fins restritamente publicitários, já que ser marginal está na hype e o que está na hype dá dinheiro. O que fica em jogo aqui é a literatura, a resistência de não se desfazer da sustância do sumo em prol da aparência. Ser marginal é se importar com isso, é fazer isso sem hesitar.

 

Agradecido aos dois pelo tempo e paciência por responderem a essa mini-entrevista.

Na próxima edição uma pessoa muito querida por todos do Recife e do Brasil, e por todos que já estudaram na UFPE, no CAC, estará conosco respondendo a estas perguntas.

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